Mesmo com pandemia, remoções continuaram com força em São Paulo em 2020

Mesmo com pandemia, remoções continuaram com força em São Paulo em 2020

Por Benedito Roberto Barbosa, Débora Ungaretti, Isabella Alho, Julia do Nascimento de Sá, Raquel Rolnik, Talita Anzei Gonsales, Ulisses Castro*

Em ano atípico em função da pandemia do novo coronavírus, ameaças e remoções judiciais ou administrativas continuaram em 2020, expondo milhares de famílias ao risco de contágio. O aprofundamento da crise da moradia no contexto da pandemia impactou as dinâmicas urbanas e os conflitos fundiários: perda da renda levaram a  despejos por falta de pagamento de aluguel que por sua vez  resultaram em novas ocupações precárias que geraram processos de reintegração de posse, gerando novas ameaças e remoções em um ciclo que marca a transitoriedade permanente.

A absoluta falta de medidas governamentais necessárias  para romper esse processo, como a moratória de aluguéis e de parcelas de financiamento habitacional, a suspensão de despejos, reintegrações de posse, desapropriações de áreas ocupadas e remoções administrativas, agravou esse cenário. Os governos alimentaram este ciclo de duas formas: não prevendo medidas de suspensão das cobranças e dos processos que resultam em despejos e remoções entre privados, e promovendo cobranças, despejos e remoções .

É o que mostra este balanço das ameaças e remoções de 2020, feito  pelo Observatório de Remoções a partir dos dados das atualizações trimestrais do mapeamento colaborativo de ameaças e remoções da Região Metropolitana de São Paulo. É uma forma de aprimorar o levantamento colaborativo que vai sendo produzido ao longo do ano, incluindo casos que, por vezes, ficaram de fora de alguma das atualizações trimestrais.

Os gráficos a seguir trazem o número de casos de ameaças (gráfico 1) e de remoções (gráfico 2) nos quatro trimestres de 2020.

 

Ao todo, aconteceram pelo menos 28 remoções na Região Metropolitana de São Paulo em 2020, atingindo 2.726 famílias. Foram identificadas, ainda, 48 ameaças de remoção, nas quais estão incluídas  ao menos 7.141 famílias.

Com a disseminação dos casos de COVID-19 em São Paulo e no Brasil a partir de março,  uma moratória nas  remoções seria uma medida essencial: só assim, seria possível garantir que todo mundo ficasse em casa, uma das principais medidas para prevenção da disseminação da doença. A atualização trimestral de abril a junho de 2020 mostrou, no entanto, que mesmo diante dessa situação pandêmica diversas famílias continuaram sendo removidas de maneira forçada e submetidas a situações de ameaça de remoção, e portanto, expostas ainda mais ao risco de contágio do coronavírus. Defensores e defensoras públicas, advogados e advogadas populares, movimentos e apoiadores e apoiadoras passaram a atuar clamando pela suspensão de despejos, reintegrações e imissões na posse, sobretudo com o argumento de que a perda da casa contraria o cerne das medidas de distanciamento social necessárias para se evitar contaminação pela COVID-19. Como resultado, algumas decisões judiciais passaram a suspender reintegrações de posse que já estavam em curso.

A sensibilização dos magistrados, no entanto, não se estendeu para processos de reintegração de posse de ocupações recentes, formadas como consequência do impacto da pandemia na renda das famílias. É o caso da reintegração de posse da ocupação formada na pandemia no bairro Vila Roseira, no distrito de Guaianases, na cidade de São Paulo. As cerca de 900 famílias que moravam na ocupação foram removidas com uso da força policial, na ausência de profissionais da área de assistência social ou da saúde para ampará-los, além de nenhuma alternativa de atendimento habitacional. Por falta de moradia e de recursos para arcar com aluguel, algumas dessas famílias se acomodaram provisoriamente em casas de parentes, e outras em barracos à beira de um córrego também no extremo leste de São Paulo.

Esse caso é representativo não só da continuidade das remoções como do aumento dos casos de reintegrações de posse, em decorrência do aumento de  novas ocupações formadas na pandemia. Como mostram os gráficos 3 e 4 abaixo, a principal justificativa para ameaças e remoções em 2020 foi a reintegração de posse, embora seja notório o número de casos relacionados às categorias de risco, PPPs e áreas de proteção ambiental.

Gráfico 3: Número de famílias ameaçadas por novas ameaças de remoção na Região Metropolitana de São Paulo em 2020 por justificativa das ameaças, e por trimestre. Incluídos somente casos em que foram identificadas as justificativas das ameaças. Elaboração: Ulisses Castro / Observatório de Remoções, 2021.

 

Gráfico 4: Número de famílias removidas na Região Metropolitana de São Paulo em 2020 por justificativa das ameaças, e por trimestre. Incluídos somente casos em que foram identificadas as justificativas das remoções. Elaboração: Ulisses Castro / Observatório de Remoções, 2021.

E não só isso: parte das suspensões ocorreram apenas enquanto as medidas de distanciamento social impactaram diretamente as atividades do judiciário. O que se viu para além de decisões esparsas em casos concretos, foi a ausência de legislações federais sobre a matéria, apesar das iniciativas existentes – como o Projeto de Lei nº 1975/2020, proposto em maio de 2020 e que deve ir à votação somente nesta semana, um ano após a propositura.

Em São Paulo, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, seguindo o Conselho Nacional de Justiça, editou sucessivas normativas suspendendo os prazos judiciais e os atos presenciais cuja prática seja incompatível com o isolamento social. No entanto, a reorganização do trabalho do judiciário e a reabertura gradual das atividades levaram à retomada e à continuidade dos processos e das remoções, sem que nenhuma medida fosse adotada levando em consideração o impacto da pandemia sobre os ameaçados de despejo.

Como exemplo das reintegrações de posse que continuaram a acontecer, é significativo o caso de uma remoção em Diadema pela Ecovias, em agosto de 2020. Tratava-se de mais uma ocupação recente, surgida na pandemia, onde diversas famílias alegaram a falta de alternativas com o recrudescimento da crise, que resultou no despejo por não pagamento de aluguel, e consequentemente a necessidade de ocupar.

Também foram marcantes ameaças e remoções promovidas pelas prefeituras, por vezes sem ordem judicial. É o caso das remoções administrativas ocorridas no município de São Bernardo do Campo, que regulamentou as demolições administrativas por meio de decreto publicado em 2018 que se baseia na justificativa de contenção de novas ocupações. As demolições aconteceram aos poucos, de forma paulatina, removendo e demolindo poucas casas de cada vez, mas repetindo  este procedimento ao longo do tempo. Sem ordem judicial, essas remoções são ainda mais invisíveis. Em alguns casos não foi sequer possível levantar informações sobre o número de famílias removidas, e as demolições extrapolaram até os limites impostos no decreto, refletindo a violência e arbitrariedade do poder público nas remoções ao longo de 2020.

Por isso, mesmo com a suspensão pontual de alguns casos em um primeiro momento, os dados indicam que o número de remoções aumentou em relação ao trimestre anterior, de janeiro a março, ainda não impactado pela pandemia. A mesma coisa podemos observar no caso dos despejos individuais: em um primeiro momento as sentenças de despejo pareceram diminuir para logo depois serem retomadas.

Esse cenário se manteve ao longo do ano, como mostramos nas atualizações trimestrais de julho a setembro e de outubro a dezembro. No judiciário, o Tribunal de Justiça de São Paulo passou a autorizar remoções que haviam sido suspensas. E as remoções sem ordem judicial pelas prefeituras e pelo governo do estado não apenas se repetiram ao longo do ano, como também foram aumentando ao longo dos trimestres. Foi o caso das remoções que aconteceram em Campos Elíseos, que se somam às remoções realizadas pelo poder público para implantação de projeto público – a PPP Habitacional. As remoções haviam sido suspensas por juízes de primeira instância, mas seguiram acontecendo sem ordem judicial. Posteriormente, o Tribunal se posicionou autorizando o cumprimento. Em março de 2021, o caso foi denunciado para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Se houve queda no número de remoções no terceiro trimestre de 2020, de julho a setembro, foi resultado de articulações e mobilizações contra os despejos e remoções, e não resultado de medidas concretas dos governos, do legislativo e do judiciário para tanto. Diante  da ausência de uma moratória das remoções e do aumento da ocorrência desses processos, movimentos sociais de moradia, entidades ligadas à pauta urbana e laboratórios de pesquisa passaram a atuar em conjunto em várias frentes e escalas. Como resultado dessas articulações, foi elaborada uma denúncia à relatoria da ONU para o direito à moradia, e a formação da Campanha Nacional Despejo Zero –  Em defesa da vida no campo e na cidade. Com atuação em todo o território nacional, a campanha fez um esforço para mapear os casos de ameaças e remoções, para fortalecimento da resistência de ameaçados e atingidos. Um exemplo desses processos de resistência foi o lançamento da campanha de Atingidos pela PPP, para evitar as remoções de moradores de áreas atingidas pelo lote 12 da PPP Habitacional de São Paulo, na Subprefeitura de Casa Verde-Cachoeirinha.

Como resultado dessas mobilizações, em  julho de 2020, o relator especial da ONU para a moradia adequada, Balakrishnan Rajagopal, fez um apelo ao governo brasileiro pela suspensão dos despejos e remoções. No mesmo mês, o Ministério Público de São Paulo recomendou à Prefeitura de São Paulo a suspensão de medidas administrativas e judiciais que resultem em remoções de pessoas pelo poder público. Merece destaque também o entendimento da Corregedoria da Central de Mandados do Fórum da Fazenda Pública, órgão responsável por realizar as remoções judiciais em terras públicas ou em processos de desapropriação, pela suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse e de imissão de posse de áreas públicas, que passariam a acontecer somente mediante decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, e não mais por juízes da primeira instância.

No entanto, todas as ações indicam apenas a recomendação de suspensões de remoções, e, se foram essenciais em diversos casos, não foram suficientes para barrar todos os processos em curso.

Todas as articulações e mobilizações tiveram impacto significativo na suspensão e adiamento de remoções. A campanha identificou 31 casos de suspensão da remoção em todo território nacional, sendo que 12 ocorreram no Estado de São Paulo. Destes, 6 se tratavam de casos da capital e os outros distribuídos entre Piracicaba, Jacareí, São Vicente, Cajamar, Ribeirão Pires e São Bernardo do Campo.

Ao que tudo indica, o ano de 2021 deve ser ainda difícil no que diz respeito aos processos de remoção. De acordo com a percepção de defensores e advogades populares ainda há muitos processos represados e que devem ocorrer nos próximos meses. Além disso, seguimos notando o surgimento de novas ocupações e o aumento de procura por espaço em ocupações já existentes. As articulações e mobilizações continuam sendo determinantes para reverter esse quadro, e um resultado importante foi a aprovação da lei estadual do despejo zero que ainda deve ser sancionada pelo governador. É o que discutiremos em breve, na primeira atualização trimestral do mapeamento de remoções de 2021.

* Pesquisadores/as da rede Observatório das Remoções – RMSP.

Texto completo en: http://www.labcidade.fau.usp.br/mesmo-com-pandemia-remocoes-continuaram-com-forca-em-sao-paulo-em-2020/